A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) surgiu do sonho da constituição de uma comunidade de países e povos que partilham a Língua Portuguesa assente numa herança histórica, num idioma comum e numa visão compartilhada do desenvolvimento e da democracia. A revista COMUNIDADES Lusófonas entrevistou o Embaixador Francisco Ribeiro Telles, atual Secretário Executivo da CPLP.
Quer salientar os esforços que têm sido realizados no sentido de aprofundar os laços históricos e linguísticos entre os Estados-Membros da CPLP que permitem criar mecanismos de verdadeira cooperação entre si?
Em 2021, a CPLP completa 25 anos desde a sua criação. Em termos institucionais, é uma organização ainda jovem que vem se construindo progressivamente, ao mesmo tempo que busca moldar-se às profundas mudanças verificadas ao longo deste período, quer na ordem internacional, quer na realidade interna de seus Estados-Membros, de onde emanam as decisões políticas que impulsionam a organização.
Tenho a convicção de a CPLP logrou, em sua curta história, consolidar o seu lugar no universo cada vez mais complexo dos organismos, instituições e mecanismos de caráter multilateral, ao demonstrar o valor que uma organização formada a partir de traços históricos e linguísticos comuns pode agregar aos processos de desenvolvimento interno e à projeção internacional dos seus Estados-Membros, por meio dos seus três pilares: a concertação político-diplomática, a cooperação e a promoção e difusão da língua portuguesa.
Na esfera política, a CPLP tem contribuído na medida de suas possibilidades para a fortalecimento institucional e político de seus Estados-Membros. Um dos instrumentos mais importantes utilizados para esse fim têm sido as Missões de Observação Eleitoral da CPLP, realizadas sempre a convite do Estado-Membro interessado. Em 2019, por exemplo, a CPLP teve a oportunidade de acompanhar importantes processos eleitorais, em Moçambique e na Guiné Bissau. No total, foram já mais de 30 processos eleitorais, incluindo eleições presidenciais, legislativas e autárquicas e o referendo de autodeterminação em Timor-Leste, em 1999, que contaram com o acompanhamento da CPLP.
A CPLP tem conseguido também articular posições conjuntas em diversos outros fora internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), além de manifestar apoio a candidaturas de nacionais de seus Estados-Membros a cargos de destaque em instituições importantes, como a própria ONU (Organização das Nações Unidas), ou a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização Internacional das Migrações (OIM).
No plano da cooperação, a CPLP atua em múltiplas frentes, com reuniões regulares de nível ministerial e reuniões técnicas também recorrentes. A sua estratégia e instrumentos encontram-se hoje perfeitamente alinhados com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e com os respetivos Objetivos (ODS). São inúmeras as áreas de intervenção que possuem hoje uma estratégia ou plano de ação conjunto no âmbito da CPLP: saúde, segurança alimentar e nutricional, ambiente, mares, igualdade de género e empoderamento da mulher, juventude, energia, turismo, trabalho infantil, ciência, tecnologia e ensino superior, educação e cultura. O atual grande desafio nestas áreas é o de alavancar recursos que possibilitem a ampliação destes planos e estratégias.
Devo destacar especialmente a Estratégia de Segurança Alimentar e Nutricional da CPLP, uma área definida como prioritária pelos Chefes de Estado e de Governo da CPLP e cujo trabalho tem sido apontado como um modelo a ser seguido pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
No plano da promoção e difusão da língua portuguesa, temos procurado enfrentar o desafio de construir uma política e uma estratégia de promoção e internacionalização de uma língua que é, por sua natureza e história, pluricêntrica. Para tanto, temos defendido o fortalecimento do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) e procurado dar continuidade e acompanhar os planos de ação decorrentes do ciclo de Conferências Internacionais sobre o Futuro da Língua Portuguesa (Brasília, 2010; Lisboa, 2013; Díli, 2016).
Acredito que, apesar de todos os avanços registados, a CPLP precisa ainda de se aproximar mais dos cidadãos e mostrar de que forma o trabalho da organização pode ter um impacto positivo em suas vidas. Nesse aspeto, registo um incremento muito significativo de atividades que a organização vem desenvolvendo em parceria com os seus Observadores Consultivos, que representam uma voz importante da sociedade civil da Comunidade.
Contudo, resta muito a ser feito nessa área e dois temas parecem-me especialmente relevantes e prioritários para a atuação imediata da CPLP: a mobilidade e cooperação económica e empresarial. Ao que acresce a promoção do interconhecimento da realidade sociocultural dos seus povos, através dos sistemas educativos dos Estados-Membros.
Para encorajar e aprofundar essa cooperação que ações têm sido tomadas, ou estão a ser preparadas, que permitam uma maior visibilidade internacional e o potencial do valor estratégico do universo lusófono quer no plano político, quer no plano económico?
Nesse momento, temos procurado ajustar-nos às mudanças geradas pela pandemia provocada pelo Covid-19, tanto nas nossas rotinas e métodos de trabalho quanto na sua própria substância. Sabemos que os efeitos da pandemia vão muito além das questões puramente de saúde e que permanecerão connosco por muito tempo. Há, assim, uma urgência em determinar como poderemos trabalhar melhor juntos, a partir de agora.
Algumas reuniões de nível ministerial, por exemplo, que haviam sido adiadas em função da pandemia, foram recentemente remarcadas em ambiente virtual. É o caso das Reuniões de Ministros do Ambiente; da Saúde; da Governação Eletrónica; da Educação; e da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. O Conselho de Ministros, formado pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros e das Relações Exteriores dos Estados-Membros, reuniu-se informalmente no final de setembro e deverá ser convocado de novo, desta feita com caráter extraordinário, em dezembro, tendo como tema central em sua agenda o projeto de Acordo sobre a Mobilidade na CPLP.
Também retomámos alguns temas que já vinham sendo tratados antes da eclosão da pandemia.
Parece-me especialmente relevante, por exemplo, a discussão ora em curso sobre a intensificação da participação dos Observadores Associados nas atividades da CPLP. A organização conta hoje com 19 Observadores Associados (18 Estados e 1 organização internacional). Neste momento, já existem 14 novas candidaturas a este Estatuto, que serão avaliadas pela próxima Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP, prevista para julho de 2021, em Luanda.
Esse interesse em associar-se à CPLP reflete o reconhecimento e o prestígio da comunidade internacional em relação à nossa organização e aos seus Estados-Membros, mas coloca-nos, ao mesmo tempo, diante do desafio de gerir a relação entre a CPLP e seus Observadores Associados de forma que ela traga benefícios para todos. Em função disso, encontra-se em curso um processo de reflexão e discussão que deverá apresentar resultados à próxima Cimeira.
Temos avançado ainda no processo de fortalecimento dos mecanismos de cooperação no âmbito da CPLP, por meio da revisão dos instrumentos hoje vigentes à luz da constante ampliação do escopo dos temas tratados e da necessidade de otimizar recursos e processos de trabalho, dando-lhes mais eficácia e transparência.
Esperamos poder em breve lançar a terceira edição do Programa CPLP Audiovisual (PAV), uma iniciativa que tem desempenhado um papel importante na formação e no fomento da indústria do audiovisual nos países da CPLP de menor desenvolvimento relativo. Trata-se, ao mesmo tempo, de um instrumento de promoção e divulgação da nossa diversidade cultural e de uma política de desenvolvimento humano e económico.
No domínio económico existe alguma expressão crescente para as empresas dos diferentes países da CPLP poderem ser apoiadas na sua promoção e internacionalização, criando um verdadeiro “mercado comum” da lusofonia?
Como disse acima, a cooperação económica e empresarial parece-me ser uma área especialmente relevante para uma maior aproximação entre a CPLP e os seus cidadãos, pelos efeitos concretos que pode produzir nas suas vidas. Trata-se de um potencial ainda não suficientemente desenvolvido no âmbito da organização.
Alguns dos nossos Estados-Membros têm-se mostrado sensibilizados com esse potencial e têm manifestado interesse em explorar as suas possibilidades. Espera-se que Angola, que assumirá a presidência da CPLP a partir de 2021, dê prioridade a este tema durante o biénio em que estará à frente dos órgãos políticos da organização.
Havia uma expectativa de que os ministros responsáveis pela área económica também impulsionassem o tema na reunião que tinham prevista para março deste ano. Entretanto, e em função da pandemia, a reunião foi adiada até ao início do próximo ano.
Ao mesmo tempo, há uma crescente mobilização por parte de setores do empresariado dos Estados-Membros da CPLP, que têm reclamado dos seus respetivos governos apoio a medidas que possam facilitar o comércio e os investimentos no espaço da Comunidade.
Uma ideia que começa a ganhar corpo é a organização regular de um fórum empresarial à margem da Cimeira bienal da CPLP, o que daria oportunidade para o setor empresarial interagir mais de perto com os Chefes de Estado e de Governo e sensibilizá-los para suas preocupações.
Será preciso acompanhar de perto a evolução do tema para que não percamos essa oportunidade, que se torna particularmente urgente num contexto pós-pandemia que se afigura difícil para todos os nossos países. E esta expectativa é crescente porque, como sabemos, o setor privado desenvolve um papel insubstituível no processo de desenvolvimento dos nossos Estados-Membros, considerando que é um setor absolutamente imprescindível na criação e manutenção de postos de trabalho, apoiando assim o combate contra a pobreza e a promoção do crescimento.
O Grupo de Trabalho Alargado sobre Cidadania e Circulação considerou que a elaboração de um “Estatuto de Cidadão da CPLP” será um elemento facilitador da integração das comunidades migrantes e da circulação entre os Estados Membros. Para quando estão previstas as conclusões das reformas e formalidades legais em cada Estado Membro para se conseguir este estatuto?
O tema da mobilidade no espaço da CPLP afigura-se tão relevante quanto complexo.
Por um lado, todos os Estados-Membros reconhecem que promover a circulação dos seus cidadãos nacionais no espaço da CPLP é um elemento essencial e fundador da Comunidade. É, sem dúvida, um elemento essencial para a promoção dos laços históricos, culturais e linguísticos que nos unem, bem como para o desenvolvimento de todos. Este reconhecimento já foi plasmado na vontade política de promover a mobilidade no âmbito da CPLP em diversos documentos e declarações.
Por outro lado, trata-se também de uma questão que cada Estado-Membro precisa equacionar levando em conta os compromissos e desafios que enfrenta em seu contorno regional. Tais compromissos e desafios variam muito de país para país e influenciam de modo decisivo o ponto de partida de cada Estado para adotar e implementar medidas que facilitem a mobilidade na CPLP. Há ritmos e dinâmicas diferentes, que precisam ser reconhecidos e respeitados.
As discussões desenvolvidas sobre a mobilidade na CPLP sempre tiveram como horizonte esta complexidade, que coloca limites à adoção de compromissos homogéneos como o projeto de Estatuto de Cidadão da CPLP. Cabe notar que o texto do Estatuto, pese embora nunca tenha sido assinado como um Acordo da CPLP, foi integrado total ou parcialmente por alguns Estados-Membros, nos seus respetivos ordenamentos.
Por esse motivo, o foco da CPLP nos últimos anos passou pelo reforço na implementação de alguns dos compromissos já estabelecidos. Recentemente, sob a liderança de Cabo Verde, presidência em exercício da CPLP, a questão da mobilidade na CPLP recebeu um impulso decisivo. Ao propor a negociação de um Acordo sobre Mobilidade na CPLP e os moldes desse Acordo, ao qual nos podemos referir como um Acordo-Quadro, a presidência cabo-verdiana logrou avanços importantes no tema.
O projeto de Acordo parte do que já existe neste domínio e estabelece um modelo flexível para que cada país avance na medida de suas possibilidades, mediante entendimentos bilaterais, trilaterais ou entre mais países, sobre diferentes modalidades de mobilidade, às quais todos os demais Estados poderão aderir quando tiverem condições para tanto.
Antecipamos que o modelo deste Acordo – por combinar ambição e flexibilidade – permitirá à CPLP conhecer avanços tangíveis no campo da mobilidade a curto, médio e longo prazo, na medida em que cada vez mais Estados decidam aumentar os seus compromissos de participação nas diferentes modalidades de mobilidade propostas.
No essencial, o texto do acordo já se encontra negociado e seguirá agora para a apreciação do Conselho de Ministros, que, como disse, deverá reunir-se, em sessão extraordinária, ainda este ano. Estou seguro de que, uma vez aprovado, o Acordo consistirá num legado importante e duradouro deixado pela presidência cabo-verdiana para a construção de uma Comunidade de cidadãos.
Face à atual pandemia que se alojou em todo o mundo, houve que alterar calendários e modificar eventos que se realizam habitualmente com regularidade para o bom funcionamento das instituições. Como é que esta crise afetou a organização e a dinâmica da CPLP?
A pandemia provocada pelo Covid-19 afetou todos os Estados-Membros da CPLP e naturalmente teve efeitos também no funcionamento da organização.
As reuniões previstas para 2020 foram inicialmente adiadas e vêm sendo agora reagendadas. Entre os encontros postergados, destaca-se a XIII Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP, prevista para acontecer no início de setembro, em Luanda, e que agora deverá realizar-se em julho de 2021. O Conselho de Ministros da CPLP que precederia a Cimeira também não ocorreu e os Ministros acabaram, entretanto, por manter um encontro informal virtual no passado dia 28 de setembro, que substituiu a tradicional reunião à margem do Debate Geral da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque. A XV Reunião Extraordinária do Conselho de Ministros, que deverá discutir a proposta de Acordo sobre a Mobilidade na CPLP, está já aprazada para 7 a 9 de dezembro, faltando ainda saber se poderá ter lugar na Cidade da Praia ou se a pandemia nos imporá, mais uma vez, a opção à distância.
Contudo, cabe ressaltar que se procurou, dentro do possível, manter a dinâmica dos trabalhos da organização, adaptando-a às circunstâncias ditadas pela pandemia e, ao mesmo tempo, redirecionando os debates no sentido de fazer frente aos novos desafios impostos pela situação inédita, grave e preocupante que vivemos todos.
Nesse sentido, a troca de experiências e reflexões sobre a reação dos Estados-Membros da CPLP à pandemia tornou-se um tema recorrente nas reuniões que vimos mantendo desde março, seja na dimensão política, a nível do Comité de Concertação Permanente (formado pelos Representantes Permanentes dos Estados-Membros junto da CPLP, em Lisboa) e do próprio Conselho de Ministros, seja na esfera da cooperação nas suas múltiplas vertentes setoriais.