Não é difícil encontrar dados chocantes no documento entregue à Conferência Episcopal Portuguesa. Um deles reporta que a idade média das vítimas no início dos abusos é de 11,2 anos. A Igreja declara que será divulgada uma lista de abusadores ainda no ativo até ao final do mês.
Os distritos com maior número de casos são Lisboa, Porto, Braga, Santarém e Leiria. Foram encaminhadas para o Ministério Público 25 denúncias.
A janela temporal dos casos começa em 1950, abrangendo vítimas de 15 até 88 anos. Isso significa que para a grande maioria das vítimas, os casos já prescreveram na Justiça.
No dia 3 de março está marcada uma assembleia plenária da Conferência Episcopal, presidida pelo bispo D. José Ornelas, para analisar em conjunto as implicações de um relatório que cobre sete décadas. O responsável já reagiu às conclusões, dizendo que “é uma situação dramática, que não é fácil de ultrapassar”.
Criada no final de 2021, a comissão debruçou-se sobre este tema fraturante ao longo de todo o ano de 2022, trabalhando sob o mote “Dar voz ao silêncio”.
O grupo integra expressamente figuras sem ligação à Igreja, a saber, um antigo ministro da Justiça, uma socióloga e uma assistente social, entre outros. Mal começou a operar em janeiro, em apenas uma semana surgiram mais de uma centena de denúncias. Até outubro, já superavam as 400. Pedro Strecht avisava que os números seriam muito maiores.
O estudo retrospetivo em Portugal (a palavra “investigação” é evitada) teve como impulso uma carta aberta assinada por centenas de católicos portugueses a exigir o apuramento de abusos, na sequência do escândalo em torno da Igreja Católica em França. Nesse país, foram reportados mais de 300 mil casos, utilizando a mesma metodologia: extrapolação estatística a partir de denúncias diretas.
Recentemente, o canal público France 2 fez uma reportagem sobre as indemnizações propostas a algumas vítimas. Ao que tudo indica, entre essas propostas estariam ofertas insólitas como viagens a Veneza ou pagamento de despesas com animais de companhia.
A questão tem lançado profundos abalos sobre a sociedade, mesmo com os pedidos de desculpa sucessivos que a cúpula da Igreja Católica apresenta, revertendo a retórica oficial que apontava “casos pontuais”.
Um dos capítulos mais difíceis de gerir será o do encobrimento de casos por parte da hierarquia católica, traço comum entre vários dos testemunhos apresentados em Portugal. As conclusões revelam um problema sistémico, espalhado por toda a instituição, o que deixa em aberto várias questões num ano em que o Papa se desloca a Lisboa para a Jornada Mundial da Juventude (de 1 a 6 de agosto).
A comissão defende que seja constituída uma nova comissão para dar “continuidade ao estudo”, integrando desta vez elementos da Igreja. E que medidas serão tomadas para renovar a confiança na instituição religiosa, evitar novos casos e restabelecer credibilidade?
Reações políticas
Depois de a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja ter divulgado, esta segunda-feira, o sumário executivo do relatório final sobre o tema – que revelou que, “no mínimo”, 4.815 crianças foram abusadas por membros da Igreja nos últimos 72 anos -, da esquerda à direita os partidos têm vindo a reagir ao que foi dado a conhecer.
Em declarações aos jornalistas ou nas redes sociais, dirigentes e deputados têm dado opiniões convergentes: como “revolta”, “atentado à liberdade” e “‘estrutura de pecado'”.
Pelo Partido Socialista, Isabel Moreira, nas redes sociais, enunciou “uma dor e revolta gigante”, destacando ainda o “enorme respeito e empatia pelas vítimas” que sente.
Já o presidente da Iniciativa Liberal, Rui Rocha, classificou os abusos sexuais na Igreja Católica como “um gravíssimo atentado à liberdade” individual, considerando que, apesar dos danos irreparáveis, é fundamental “garantir a compensação possível” e a prevenção.
André Ventura, do Chega, vincou, em declarações aos jornalistas, que é católico, compreendendo a revolta das vítimas. Na ótica do líder do partido, “é importante mudar o prazo de prescrição destes crimes uma vez que muitas das vítimas só falam muito tempo depois de serem abusadas ou violadas”.
Por sua vez, Rui Tavares, deputado do Livre na Assembleia da República e vereador na Câmara Municipal de Lisboa, apelou, em dois ‘tweets’, que o “fim da impunidade, fim ao encobrimento e fim aos abusos” sejam uma “missão”.
Para o partido Pessoas–Animais–Natureza (PAN), numa série de publicações na rede social Twitter da deputada única Inês Sousa Real, foi feito um apelo a que “a Igreja, a sociedade e o Estado não deixem cair este tema no esquecimento” e que “não haja tolerância com os abusadores”.
O Bloco de Esquerda, pela voz do deputado José Manuel Pureza, recorreu ao número de casos e vítimas para destacar que “se fosse uma já era demais”. “Se eu tivesse que pôr um título a isto usaria uma expressão da Doutrina Social da Igreja: ‘estrutura de pecado'”, apontou no Facebook.
De recordar que a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica revelou, esta segunda-feira, que recebeu 512 testemunhos validados relativos a 4.815 vítimas desde que iniciou funções em janeiro de 2022 e enviou para o Ministério Público 25 casos de entre os 512 testemunhos validados recebidos ao longo do ano, anunciou o coordenador Pedro Strecht.
O pico de casos terá ocorrido entre 1960 e 1990, com 25% destes reportados desde 1991. Cerca de 77% dos agressores são padres, que abusavam uma maioria de vítimas do sexo masculino, com uma média 11,2 anos de idade.