O antigo bispo de Pemba, D. Luiz Fernando Lisboa, foi o primeiro a alertar para a profunda crise humanitária desta província de Moçambique. Depois, foram o Papa Francisco e o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres. Certo é que, três anos depois do início dos ataques rebeldes, são muitas as pessoas que continuam a passar fome e a não ter água. Não há luz elétrica, não há emprego e não há escola para as crianças.
Moçambique: Governo de Merkel “observa a situação” em Cabo Delgado
Berlim diz que acompanha a situação na província moçambicana e tem contactado organizações locais. Para o partido “os Verdes”, na oposição, isto não chega: é preciso ajudar Maputo a alcançar uma solução para o conflito.
Uwe Kekeritz, do partido alemão “os Verdes”, é um dos poucos deputados alemães especializados em questões africanas. Em entrevista à DW África, diz que “a situação em Moçambique é preocupante” com “a violência a aumentar” na província nortenha de Cabo Delgado.
“As pessoas sentem-se abandonadas pelo Governo. Depois dos danos devastadores, causados pelos furacões nos últimos anos, a população está agora a sofrer com os ataques terroristas brutais”, lamenta.
Foi por isso que o deputado, de 67 anos, que chegou a trabalhar como professor cooperante nos Camarões, convenceu o grupo parlamentar do seu partido a avançar, no início do ano, com um pedido de explicações oficial dirigido ao Governo alemão, liderado pela chanceler Angela Merkel.
Como avalia Berlim a situação na província moçambicana de Cabo Delgado? Estará a cooperação alemã empenhada na melhoria da situação dos deslocados internos?
A resposta do Governo alemão é vaga, como aliás todas a reações às 30 perguntas dos “Verdes”: “O Governo observa a situação humanitária em Cabo Delgado e está em comunicação constante com as suas organizações parceiras locais”.
O deputado da oposição esperava mais do Executivo de Merkel. Embora “o Governo federal alemão também entenda que a população está a ser empurrada para os braços dos terroristas, a cada dia que aumenta a pobreza”, está “a fazer muito pouco para evitar que isso aconteça”, diz Uwe Kekeritz. Na avaliação do deputado, “a Alemanha praticamente não se envolve na região”.
“Não há cooperação para o desenvolvimento em condições, nem há ajuda humanitária de forma significativa. E o Governo federal alemão também não faz nada para promover a prevenção ou resolução de conflitos. Seria, portanto, gratificante se a União Europeia pudesse contribuir para uma solução pacífica para o conflito”, propõe Kekeritz.
Segundo o deputado da oposição, a Alemanha deveria intervir diplomaticamente, no sentido de promover uma solução para o conflito. No entanto, na sua resposta, o Governo alemão desvaloriza as críticas, salientando que procura sempre o diálogo com Maputo, tanto a nível bilateral, como também através de canais da União Europeia. E “cabe ao Governo moçambicano apresentar pedidos concretos de apoio, assim como aceitar ofertas concretas de ajuda”.
O partido alemão “os Verdes” tem uma abordagem muito crítica relativamente à exploração do gás natural e de outros recursos naturais na região, lembra o deputado Uwe Kekeritz, que vê no negócio das indústrias extrativas um dos motivos para o agravamento do conflito.
O Governo alemão não concorda e diz que, do ponto de vista de Berlim, “as matérias-primas na região não são um motor do conflito militar em Cabo Delgado”.
No entanto, o deputado da oposição insiste: “A extração de minérios desempenha um papel muito importante na região. Mas estamos a ver que as indústrias extrativas destroem o sustento das pessoas e levam à migração e à miséria. Ao mesmo tempo, a população local não beneficia com os lucros que vão principalmente para as empresas estrangeiras.”
“Em vez de depender de soluções militares e investidores estrangeiros”, continua Uwe Kekeritz, “o Governo moçambicano deveria finalmente levar a sério a situação do povo de Cabo Delgado. Deveria permitir o desenvolvimento sustentável e fazer tudo para evitar uma nova escalada da violência”.
O maior partido da oposição em Moçambique, a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), saúda o facto de o conflito armado em Cabo Delgado já ter chegado ao Parlamento alemão.
O deputado da RENAMO, Alberto Ferreira, afirma “Eu fico relativamente contente por saber que o partido dos Verdes questiona o Governo alemão por inação. A Alemanha é sempre o líder dentro da Europa e, hoje, distancia-se e não se pronuncia efetivamente. Temos Portugal e França que se pronunciaram e a Alemanha ainda não.”
Portugal enviará para Moçambique cerca de 60 formadores de forças especiais
O ministro da Defesa de Portugal estima que cerca de 60 militares portugueses farão parte do contingente de formadores de forças especiais que será destacado em abril para auxiliar Moçambique no combate ao terrorismo.
“O que vamos destacar são formadores para formar fuzileiros e comandos. São militares que têm essas valências, forças especiais. Acredito que seja na ordem dos 60. Ainda não está estabilizado (o número de efetivos) porque ainda há um trabalho de planeamento em curso com as autoridades moçambicanas”, afirmou João Gomes Cravinho.
“Irão, em princípio, para locais diferentes: no sul do país, perto de Maputo, e no centro, mas ainda não está inteiramente decidido”, adiantou ainda o responsável pela tutela.
Numa entrevista exclusiva concedida recentemente à DW, o ministro da Defesa de Portugal já tinha sublinhado a abertura da União Europeia (UE) em apoiar Moçambique. João Gomes Cravinho revelou também que no início de abril já “haverá condições” para começar a formação sobre terrorismo.
A província moçambicana de Cabo Delgado está sob ataque desde outubro de 2017 por grupos de insurgentes ligados a organizações islâmicas radicais e classificados desde o início de 2020 pelas autoridades moçambicanas e internacionais como uma “ameaça terrorista”.
Questionado sobre as alterações ao programa quadro de cooperação técnico-militar com Moçambique, para vigorar nos próximos três anos, Gomes Cravinho precisou que o que está previsto é uma “intensificação” da cooperação com este país, na sequência do contexto atual de ameaças.
A cooperação técnico-militar entre Portugal e Moçambique existe desde 1988.
Exército francês a apoiar Moçambique contra terrorismo na surdina?
Há quem acredite que sim. Especialista entende que isso explica o avanço das FDS no norte do país. Fernando Cardoso está convicto de que França vai fazer o que puder, do ponto de vista de controlo de rotas marítimas.
No começo de janeiro, o ministro da Defesa, Jaime Neto, afirmou que “a Marinha de Guerra fortificou o seu trabalho de fiscalização” no porto de Mocímboa da Praia, tomado pelos insurgentes em agosto.
E vários outros avanços militares em Cabo Delgado têm sido reportados pelas autoridades nos últimos tempos, “consertando” a imagem de incapacidade que era atribuída às Forças de Defesa e Segurança moçambicanas (FDS).
O especialista em assuntos africanos Fernando Cardoso acredita que tal sucesso tem o “dedo” da França e dos Estados Unidos da América.
“Acho que essa possibilidade está a ser registada, só que não está a ser relatada. Tal como acho que, e os americanos disseram, é absolutamente claro que os avanços recentes de tropas especiais moçambicanas foram feitos com o apoio logístico proporcionado pelos norte-americanos”, acredita Cardoso, acrescentando que “e de franceses, provavelmente, que têm uma experiência de colaboração muito longa em África, particularmente na zona do Sahel. As forças americanas e francesas estão habituadas a cooperar nesse tipo de situações”.
Não será por simples generosidade da França, a Total, que explora gás no norte, é uma empresa pública francesa. Pela proteção dos seus interesses, pode ativar as bases nas suas ilhas do Índico, justamente em frente a Moçambique, como Mayotte, que fica diante de Cabo Delgado, por exemplo, considera Cardoso.
O especialista lembra que o país tem capacidade do ponto de vista naval e de vigilância para apoiar Moçambique a tentar parar a entrega de material de guerra aos insurgentes. “E estou absolutamente convencido que a França vai fazer o que puder, do ponto de vista de controlo de rotas marítimas, cabendo às forças moçambicanas a guerra no terreno com apoio logístico”, diz.
Contudo sublinha que “até agora não se verificou que seja necessário o estacionamento em terra de unidades militares francesas em defesa desse projeto”.
Relativamente à prática da França e das suas multinacionais energéticas em situações semelhantes às de Cabo Delgado, Cardoso lembra que, no Níger, onde se situam duas das principais empresas pertencentes ao grupo nuclear francês Areva, são protegidas por unidades militares francesas.
UE: “O olhar a distância do homem branco”
Um balão de oxigénio com que Maputo pode eventualmente também contar, enquanto a Total operar. Já quanto aos vizinhos da França no velho continente, que do “el dorado” moçambicano nada usufruem, o especialista nos PALOP com influência islâmica Raúl Pires está certo de que se pode esperar pouco.
“Não estou a ver a União Europeia a fazer um esforço adicional para acudir a Cabo Delgado. Pode obviamente acudir em termos de cooperação técnico-militar com o tal olhar à distância do homem branco relativamente ao que se está a passar no terreno, dando algumas indicações. Agora, uma intervenção militar só com o chapéu de chuva da UE não me parece. A ONU, sim, e aí as forças portuguesas entrariam”, entende.