A associação de defesa dos direitos digitais diz que vai avançar com uma providência cautelar contra o uso e instalação obrigatória da aplicação StayAway Covid.
A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) diz que tornar obrigatória a utilização de uma aplicação para avisar de possíveis contágios por covid-19 “suscita graves questões relativas à privacidade dos cidadãos”. As declarações surgem horas depois de o primeiro-ministro anunciar que quer tornar obrigatório o uso da aplicação StayAway Covid em contexto laboral, escolar, académico e nas forças armadas e de segurança.
A ferramenta de rastreio de contactos, lançada no final de Agosto, permite que os infetados com o novo coronavírus possam ativar um alerta no telemóvel que avisa as pessoas com quem estiveram próximas nos últimos 15 dias. Para isto funcionar bem, é preciso que as pessoas tenham a app instalada. Aprovada em julho em Conselho de Ministros, a aplicação foi apresentada como “um instrumento complementar e voluntário de resposta à situação epidemiológica” através do reforço da identificação de contactos.
“Impor por lei a utilização da aplicação Stayaway [Covid], seja em que contexto for, suscita graves questões relativas à privacidade dos cidadãos”, esclarece Clara Guerra, porta-voz da CNPD.
Num comunicado enviado às redações, a CNPD nota que “pugnou desde sempre pelo carácter voluntário da aplicação” e que a obrigatoriedade de uso desta aplicação pode levar à discriminação de alguns cidadãos visto que a aplicação não é compatível com todos os modelos de telemóveis, em particular, modelos mais simples ou antigos.
A Proteção de Dados lembra também que “de acordo com um relatório apresentado esta semana pelo Conselho da Europa, nenhum país, de um total de 55 países aderentes à Convenção de Proteção de Dados (Convenção 108), implementou com carácter obrigatório este tipo de aplicação.” “[As apps] devem ser instaladas voluntariamente e desmanteladas assim que possível” era uma de oito recomendações chaves publicadas pela Comissão Europeia em abril.
“Isto é um testemunho evidente da rampa deslizante do uso e recurso das tecnologias para infringir nos direitos e liberdades dos cidadãos”, explica, por sua vez, Maria do Céu Patrão Neves, investigadora e professora catedrática de Ética. “Estas aplicações só foram ‘aceites’ porque seriam voluntárias. Se deixarmos isto passar, o que impede as aplicações de passarem a usar GPS ou deixarem de ser descentralizadas?”
Embora a Comissão Europeia recomende o uso de tecnologia bluetooth, que não guarda dados sobre as coordenadas geográficas do utilizador, há vários países que optam por tecnologias mais invasivas. O sistema sul-coreano, por exemplo, utiliza tecnologia GPS para registar a localização dos utilizadores infetados e garantir que respeitam o período de quarentena. Já na China, pioneira no desenvolvimento destas aplicações, os cidadãos têm de passar um código QR (uma espécie de código de barras) que mostra se estão infetados ou potencialmente infetados e determina o acesso a espaços públicos.
“O que temos da União Europeia são orientações. A UE não tem o poder de interferir diretamente com as decisões do país”, lembra, por sua vez, Jorge Bacelar Gouveia, professor catedrático de direito e advogado. “Obrigar ao uso da aplicação não é inconstitucional”, diz o advogado. “Estamos numa situação de emergência e pode ser necessário restringir alguns direitos em liberdade em prol da segurança.”
Devemos ser obrigados a usar uma app que pode dar “uma falsa sensação de segurança”? Neste caso, o direito à segurança sobrepõe-se à identidade e desenvolvimento da personalidade, que permite às pessoas definir como se apresentam, o que vestem e que artefactos usam.
A associação portuguesa D3 (Defesa dos Direitos Digitais) já anunciou que vai avançar com uma providência cautelar contra o uso e instalação obrigatória da aplicação StayAway Covid, caso a medida anunciada esta quarta-feira por António Costa receba luz verde do Parlamento.
“É uma quebra de confiança e vai completamente contra a linha seguida em Portugal e na União Europeia de que a app seria sempre voluntária”, justificou ao jornal Público Ricardo Lafuente, vice-presidente da Associação D3. “Se isto é possível, o que nos garante que a aplicação não seja atualizada para recolher os nossos dados?”
“É provável que a aplicação tenha de ser alterada”, reconhece o advogado Jorge Bacelar Gouveia. “Uma das lacunas da tecnologia é que as pessoas infetadas não têm de ativar o alerta na aplicação e há muitos infetados que não se querem ‘denunciar’. A app pode ter de ser repensada para se tornar obrigatória. Por exemplo, ao envolver as operadoras de telecomunicações.”
Para já, a equipa que desenvolve a aplicação não foi avisada de mudanças. “O primeiro-ministro levantou apenas uma possibilidade”, sublinha José Manuel Mendonça, presidente do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (Inesc Tec), que lidera o desenvolvimento da aplicação desde Março. “A aplicação é modificável, e pode sempre melhorar, mas ainda não fomos informados de nada. Ainda é cedo para avaliar concretamente uma proposta que ainda tem de ser discutida em Parlamento”, lembra Mendonça.
Para o presidente do Inesc Tec, a app beneficiaria de mais divulgação. “Só que nesta situação receio que muitas pessoas se aproveitem para difamar a aplicação e dar uma ideia errada de como funciona”, lamenta. “A aplicação não infringe direitos nem guarda dados das pessoas.”
Há, no entanto, outras preocupações. Ricardo Lafuente, da D3, acredita que enquanto algumas pessoas serão obrigadas a utilizar a aplicação, outras poderão escapar facilmente ao comprar um telefone incompatível com a Stayaway Covid. “A obrigatoriedade da aplicação é facilmente contornada”, sugere. “Quem puder, pode comprar um telefone mais básico, que não funcione com aplicações, para apresentar em contexto laboral.”
Para a bioeticista Maria do Céu Patrão Neves, tornar a aplicação obrigatória é uma saída fácil: “As decisões democráticas difíceis prendem-se com equilibrar os interesses públicos com os direitos e liberdades dos cidadãos.”