O ex-secretário de Estado da Defesa Marco Capitão Ferreira, que se demitiu depois de ter sido constituindo arguido na Operação “Tempestade Perfeita” por suspeitas de corrupção, deixou a IdD – Portugal Defence, holding que gere as empresas da indústria de Defesa participadas pelo Estado, com 3,6 milhões de euros por acertar com as Finanças.
O diferendo, que está descrito no relatório e contas da IdD de 2021 – o primeiro e único ano completo de Capitão Ferreira como Presidente do Conselho de Administração (CA) – tem a ver com os ativos restantes da liquidação da extinta EMPORDEF (a cuja comissão liquidatária também presidiu) detidos pelo Estado e que transitaram para a IdD na reestruturação iniciada em junho de 2020.
Na assembleia-geral realizada em novembro de 2022 para aprovar as contas de 2020 (já com muito atraso) o acionista Estado determinou que: “considerando o registo, nas contas da idD relativas ao exercício findo em 31-12-2020, de um conjunto de créditos sobre participadas da extinta EMPORDEF, SGPS. S.A., no valor de 3,6 milhões de euros, circunstância que não merece a a concordância do acionista único na medida em que se tratam de ativos transmitidos para o Estado na sequência do processo de extinção da EMPORDEF, determina-se ao CA que diligencie no sentido de proceder ao ajustamento das contas relativas ao exercício findo em 31-12-2021, através da relevação de um passivo financeiro favorável ao Estado no montante (3,6 M), de modo a incorporar o entendimento preconizado pelo acionista único”.
Porém, Marco Capitão Ferreira refutou, argumentando que “ouvidos os órgãos de fiscalização” estes aconselharam “a não reabrir as contas” e consideram que estas “refletem, especificamente no que se refere a estas matérias, de forma adequada, em todos os aspetos legais, jurídicos, financeiros e contabilísticos, as operações de registo de créditos sobre as participadas em causa da extinta EMPORDEF”.
A situação de diferendo manteve-se também em 2022 e só com a atual administração presidida por Alexandra Pessanha (antiga vogal de Marco Capitão Ferreira) a IdD anuiu a acertar as contas com a Direção-Geral de Tesouro e Finanças (DGTF).
“Em relação à questão dos créditos, o atual CA irá cumprir a determinação do acionista Estado. As contas de 2022 são ainda marcadas pela execução da determinação acionista de reconhecimento de uma dívida ao Estado de 3,6M€, resultante de créditos sobre as participadas da IdD. Conta-se, portanto, que a análise final destes créditos possa ser feita durante a execução financeira de 2023 de forma a melhorar a informação financeira apresentada”, garantiu o porta-voz oficial.
Este diferendo, de resto, poderá ter sido uma das causas para atrasos na aprovação das contas da gestão da IdD desde que Marco Capitão Ferreira assumiu a administração até março de 2022, quando foi para o Governo.
O relatório e contas de 2021, que deveria aprovado até maio de 2022 (já com a prorrogação da pandemia), foi há dias publicado no site, mas só vai ser discutido e aprovado em assembleia geral pelo acionista Estado em setembro.
A Unidade Técnica de Acompanhamento e Monitorização do Setor Público Empresarial (UTAM), entidade que fiscaliza a gestão financeira deste setor, regista também algumas omissões na sua página oficial. Por exemplo, na lista de “Propostas de Planos de Atividades e Orçamento para o triénio de 2022-2024” a da IdD está como “não recebida”. Já a do triénio de 2023-2025 está “em análise”.
As anteriores foram “analisadas”, mas nem a UTAM nem o ministério das Finanças facultam as conclusões e /ou recomendações.
A IdD invoca, por exemplo, um parecer “favorável” da UTAM ao seu Plano de Negócios anunciado na sequência da reestruturação de 2020, na qual se incluía “acelerar a execução da Lei de Programação Militar, designadamente, com a construção de 6 novos Navios Patrulha Oceânicos, no valor de 352M€ a executar entre 2020-2029”.
Este objetivo foi concretizado num contrato de assessoria (por cinco milhões de euros), aprovado em Conselho de Ministros, que foi chumbado pelo Tribunal de Contas por estar “fulminado de nulidade” (sic).
O DN pediu informações sobre este parecer e sua monitorização à UTAM e ao ministério das Finanças, mas foi negado.
Neste ano de estreia na IdD, conforme descrito do relatório de contas, Marco Capitão Ferreira aumentou de três para cinco o número de administradores e contratou mais sete colaboradores, o que contribuiu para a escalada de despesas com pessoal que ascendeu a cerca de dois milhões de euros (mais 650 mil euros ), mais 40 mil em frota automóvel e mais 18 mil em deslocações e estadas, entre outros.
Mas apesar das contratações de especialistas, o homem que entrou para a área de Defesa pela mão de Nuno Severiano Teixeira, quando foi ministro desta pasta em 2008, e num louvor que lhe concedeu destacou as suas “sólidas virtudes de caráter e relevante sentido de serviço público”, ainda gastou cerca de 320 mil euros em advogados e consultores, conforme noticiou o DN.
Outra questão a suscitar dúvidas a fontes do setor, é o facto de Capitão Ferreira, e depois as suas sucessoras – primeiro Catarina Nunes (que bateu com a porta em fevereiro deste ano a meio do mandato) e agora Alexandra Pessanha (quadro do Tribunal de Contas) – nunca ter pagado renda pelas instalações que servem de sede da IdD, no Palácio Bensaúde, em Lisboa, um imóvel do ministério da Defesa.
Como edifício do Estado, e obedecendo ao “princípio de onerosidade”, estipulado na lei do orçamento, seria obrigatório o pagamento de uma renda. Mas tal não aconteceu até agora, apesar de ocuparem o edifício, onde também funciona a Inspeção-Geral da Defesa Nacional, desde janeiro de 2022.
No já citado relatório referente a 2021, é assumido que “ao abrigo da legislação em vigor e da aplicação do princípio de onerosidade de uso, a IdD – Portugal Defence venha a pagar uma renda à secretaria-geral do Ministério da Defesa Nacional”, cujo valor, sublinha-se, “aguarda ainda a definição e apresentação de proposta por parte daquela entidade”.
Na altura, Marco Capitão Ferreira perspetivava que “numa primeira fase” fossem “descontados os montantes despendidos nas obras de requalificação realizadas e a atualização da infraestrutura técnica de parte do edifício (cablagens, comunicações, segurança, etc.)”.
Fonte oficial do MDN diz que “a IdD – Portugal Defence e os serviços centrais do Ministério da Defesa Nacional encontram-se a definir os valores (…), processo que tem em conta as obras necessárias e de adaptação realizadas”.
Tendo em conta que estas “obras de adaptação” atingiram cerca de meio milhão de euros, se o valor fosse semelhante à renda paga pela anterior estrutura da IdD num prédio no Restelo (cerca de 4000 euros/mês) teriam isenção cerca de 11 anos. Sendo provável que a renda seja menor, o período será ainda maior.
Estará por dias a acusação do Ministério Público da operação “Tempestade Perfeita” que investigou suspeitas de corrupção na Defesa e tem como um dos arguidos Marco Capitão Ferreira.
Não se sabe se será ou não acusado, uma vez que as matérias de que vem indiciado – uma alegada contratação “fantasma” e um pagamento duvidoso de 61 mil euros – acabaram por levantar dúvidas sobre toda a sua passagem pelo setor, o que pode exigir outra investigação criminal separada.
A gestão na holding IdD do homem que João Gomes Cravinho elogiou como “uma das raras pessoas com conhecimento aprofundado nesta área muito especializada” será alvo de uma auditoria do Tribunal de Contas, pedida pela tutela e pelo parlamento. Em 2021, a IdD fechou o ano com 4,3 milhões de prejuízo.