Algo se passa de profundamente errado neste país. Será que o atual governo é possuído de um iluminismo súbito que descobriu um retalho de terra miserável escondido debaixo de um manto de promessa da terra prometida? Será? Será que os que estiveram antes não os continuo a ver sentados, com um sorriso plasmado e uma crítica à honra ofendida quando estão agora do outro lado da barricada parlamentar. Será que a opressão noticiosa que me esfrangalha os nervos todos os dias com tanto pronúncio de desgraça não continua esplanada nos mesmos rostos que vejo há vinte anos interpretando papéis diferentes?
Este apocalipse medíocre de uma Democracia que encerra em si, no limite, a sua própria autodestruição – as medidas ingratas não colhem votos e os votos dão vitória, tem sido o nosso postponere fatal, mas não só… e tudo isto me trouxe à memória uma das mais enigmáticas obras de Fiódor Dostoiévski, o Crocodilo, um conto fantástico inacabado escrito entre 1862 e 1864, uma contundente sátira à burocracia vigente na altura e à situação vivida pelo império Russo naquela época, não muito diferente do que se passa nos nossos dias.
O crocodilo descreve-nos a odisseia de um funcionário público, Ivan Matviéitch, que queria apenas visitar com sua esposa, Ielena Ivânovna, um crocodilo em exposição e acaba engolido pelo animal, mas permanece vivo. A estória é narrada por Siemión Siemiônitch, um colega de trabalho e os problemas surgem quando o dono do crocodilo, um alemão, se recusa a vender o crocodilo
para salvar Ivan. O crocodilo adicionado de sua carga passa, assim, a ser uma atração com novos ingredientes para o público e a vida de Ivan secundarizada para um plano menor.
O que Dostoiévski nos traz lido à luz de hoje não é só a atualidade da sua crítica, mas talvez sim a necessidade que temos de ter um crocodilo. Que não engula necessariamente funcionários públicos, mas toda esta emaranha teia política que se cristalizou ao longo das últimas três décadas. Uma teia nefasta que se instalou em muito do Poder e nas múltiplas estruturas que gravitam à volta desse poder, populadas por uma alcateia de gente que gravita num ciclo desesperado de arrogância, tentando esconder a sua precária necessidade de sobrevivência. São estes que acabam por abrir caminho aos populismos, ao triunfo da aculturação do povo também provocado por um falso mediatismo em que impera sobretudo a falta de rigor, de ética e uma noção clara do valor da informação. Se existe algo que, num curto prazo, também se impõe neste pais é uma profunda reflexão sobre os media e os caminhos do futuro.