Muitos portugueses que vivem e trabalham no estrangeiro contam com os meios digitais para manter ligação à cultura, à terra e à língua que deixaram para trás. Existe hoje, no entanto, uma geração de lusodescendentes que já não fala português por falta de “ferramentas” que cativem e que os mantenham sintonizados com a língua de Camões.
A Rádio Miúdos, emissora nacional online que surgiu em 2015, tem na sua génese a missão de preencher as lacunas no panorama da língua portuguesa, ser ponto de encontro e uma “ferramenta” de ligação entre crianças emigrantes espalhadas pelo mundo para que estas possam praticar a língua e manter contacto com a cultura, com o país de origem.
“Nasce com esta vontade, não só de dar voz às crianças, que é a sua missão principal, mas também de, através da língua portuguesa, juntar as crianças da lusofonia, dar esta ferramenta aos pais para que estes possam manter a língua mais viva” no contexto da emigração, conta à Revista Comunidades Verónica Milagres, uma das fundadoras da emissora.
Na Rádio Miúdos fala-se de música, contam-se histórias, esboçam-se projetos e sonhos, em português, porque é a falar, mas também a brincar, que se estimula a criatividade e se mantém o português bem vivo. Aqui, a voz é dada a miúdos e não a graúdos, porque o objetivo “é dar às crianças falantes de português uma rádio à sua medida, com conteúdos e uma linguagem adaptados às suas idades”.
“Quisemos criar uma ferramenta que unisse todas as crianças na diáspora através da língua, dar voz não só às portuguesas ou lusodescendentes, mas a todas as que falam português, seja do Brasil, de Cabo Verde ou de Timor-Leste”, explica Verónica, comunicadora nata que é também cantora lírica profissional, foi professora e tem pós-graduação em língua gestual portuguesa para crianças.
“O objetivo é proporcionar aos miúdos um media digital que se une à volta da língua, é que eles tenham essa coisa em comum: a língua. Depois, através desta terem contacto com as culturas, as músicas, todas as áreas culturais, científicas e artísticas de que podem falar, com uma coisa que é muito importante na rádio que é sabermos que estamos na privacidade de um estúdio, que ninguém nos está a julgar pelas aparências. Por isso é que a rádio continua a ser mágica”, junta-se a nós via Zoom João Pedro Costa, produtor de rádio e também fundador do projeto, que nos fala a partir do estúdio, no Bombarral.
“O objetivo é também combater o desamparo da língua com que muitos emigrantes se deparam quando optam por residir no estrangeiro”, acrescenta a diretora da estação.
“São cérebros portugueses que não estamos a puxar para a realidade de Portugal”
Muitos emigrantes portugueses foram perdendo o contacto com a língua materna e existe hoje uma geração de lusodescendentes que já perdeu o português. “Encontrámos muitas dificuldades junto de pais que contactamos, que vivem em países em que se não forem eles a falar português em casa, não há mais contacto com a língua”, refere Verónica.
Não existem ferramentas criativas, apelativas, lúdicas que entusiasmem esta nova geração para o contacto com a língua, para que as crianças continuem a ouvir o português, para além das aulas. Aquele que se vai falando em casa “é muito limitado”, perde-se muito vocabulário, e “quanto menos contacto tiverem com a língua mais longe ficam da família, não porque não gostem de Portugal, mas porque começam a não ter comunicação possível”. E estas dificuldades traduzem-se em quê? “São cérebros portugueses que não estamos a puxar para a realidade de Portugal”, diz a comunicadora.
A Rádio Miúdos tem abrangência de todas as faixas etárias. Há pouco mais de um ano abriu um segundo canal, o “Canal Miudinhos”, mais dedicado às crianças dos 0 aos 6 anos. “A nossa intenção é estratificar um bocadinho mais. Não só temos ferramentas para que estes pais possam dar a ouvir o português aos bebés, através da música, lengalengas, histórias, contos, para os bebés e depois para os mais crescidos a rádio em si, em que podem participar de onde quer que estejam”. Basta a criança ter Internet e saber falar português, “mesmo que seja um português arranhado”, pode participar na Rádio Miúdos. Atualmente, a emissora conta com “correspondentes” em Portugal, mas também em Cabo Verde, Alemanha, França, Escócia e já chega a mais de 170 países em todo o mundo.
Cidadania digital
Para os fundadores da emissora, o equilíbrio não está apenas no digital, não apenas no real, mas sim, num equilíbrio entre estas duas. “O digital é para ser considerado, é uma ferramenta extraordinária dos dias de hoje, mas gostamos de incentivar os miúdos a irem para o terreno, para o real e não ficarem “na ferramenta”, explica Verónica. “Claro que se tiverem de fazer emissões em direto, através do Zoom tem de ser através do digital, e ganham todas estas capacidades digitais e entram no mundo da cidadania digital que é muito importante”, diz.
“A rádio tem uma enorme componente pedagógica e de descoberta do mundo, por terem mais ferramentas de escolha. E o efeito desta cidadania digital, de formação, só se verificará mais tarde, quando forem adultos e tiverem de fazer escolhas. Permitir-lhes-á perceber que isto foi uma experiência diferente que lhes servirá para o resto da vida. A ideia de que poderão ir mais alto, mais longe do que as próprias ambições que se desenhavam à partida e que com a rádio foram alargando”, acrescenta João Pedro.
A estação sedeou-se no Bombarral, permitindo a miúdos “daqui” ter outras experiências que não permitiria estando sedeada numa zona urbana, “que é sempre o que acontece”. “Aos das zonas urbanas acontece-lhes tudo, os miúdos nas zonas rurais são sempre espectadores. Tentamos aqui dar-lhes autonomia para perceberem que esta é uma experiência universal e que todos os miúdos podem ter o privilégio e a responsabilidade de trabalhar numa rádio para miúdos e falarem dos assuntos que querem, com os outros miúdos”, explica o coordenador de produção, que começou na Rádio Universidade de Coimbra (RUC) e passou por tantas outras estações como a rádio Macau, a RFM ou a Comercial.
Rádio Escolas, o projeto pedagógico
A Rádio Miúdos tem em curso um projeto que consiste em montar e dinamizar rádios nas escolas lusas além-fronteiras. A ideia é criar polos da emissora na diáspora, transmitindo-lhes o know-how para que estas fiquem autónomas, sempre associadas à “rádio mãe”. “O projeto inclui criar rádios nas escolas de português no estrangeiro e aqui as rádios da diáspora poderão ser um fator de peso em termos de parceria para desenvolver este projeto lá fora”, diz-nos Verónica Milagres.
Para concretizar o projeto são precisos apoios, que os responsáveis esperam vir a conseguir junto de quem possa estar interessado. “Agradecemos todo o apoio que possa surgir, de todos aqueles que estão aptos a ajudar, sejam pessoas em nome individual, empresários, que tenham essa vontade de apoiar o projeto como um todo, ou que queiram ajudar a montar uma rádio numa escola especifica, numa comunidade específica”, refere.
“É muito mais interessante a criança sair das aulas e ir para a rádio, e esta trabalhar o português de uma forma divertida. Que isso seja também um chamativo para que essas crianças queiram depois vir conhecer a Rádio Miúdos central, que seja um chamativo para Portugal”.
O protocolo que visa promover a língua portuguesa na diáspora
Verónica Milagres (à esquerda), Diretora da Rádio Miúdos, em cerimónia com Berta Nunes, ex-secretária de Estado das Comunidades
Em março último, a emissora estabeleceu um protocolo de cooperação com a Secretaria de Estado das Comunidades, que visa estimular a interação, os vínculos linguísticos e culturais entre Portugal, as crianças, jovens portugueses e lusodescendentes no estrangeiro.
A colaboração implicará o envolvimento das Coordenações de Ensino Português no Estrangeiro, do Camões, I.P, mas também das comunidades. “A ideia é congregar toda a comunidade, seja escolar, seja de associações, clubes, da língua, com o objetivo sempre do publico alvo que nós temos”, adianta a responsável pela estação de rádio. “Não será por isso focado em todos os assuntos e mais alguns, embora, na Rádio Miúdos, não haja nenhum assunto proibido”.
O protocolo será trabalhado a 3: “Mesmo sendo o Instituto Camões focado na rede de ensino, será em articulação com a secretaria de Estado das comunidades Portuguesas, até porque é tutelada pelo MNE, ao nível da rede consular, diplomática, em que o MNE vai fazer chegar a essas entidades também as notícias e as ações que estamos a desenvolver em conjunto”.
“Este é mais um passo que irá potenciar a missão da Rádio Miúdos – dar voz aos miúdos, promover a sua cidadania em idade precoce e agregar globalmente as crianças à volta da língua”.