Assumi em outubro passado a representação diplomática nacional na Eslovénia, onde acompanharei as Presidências portuguesa e eslovena do Conselho da União Europeia, que decorrerão consecutivamente em 2021.
Luisa Pais Lowe – Diplomata, Encarregada de Negócios em Liubliana, Eslovénia
Após três muito gratificantes anos a coordenar o Gabinete de Apoio ao Investidor da Diáspora na Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, em Lisboa, iniciei assim mais um dos múltiplos ciclos que compõem a carreira dos diplomatas, em que oscilamos ao longo dos anos entre Portugal e os mais diferentes países, acumulando experiências sempre enriquecedoras e, acima de tudo, cumprindo o dever e a missão de representar e valorizar Portugal, e de defender os interesses do nosso país e dos nossos concidadãos.
Cheguei à Eslovénia de automóvel, com o meu marido, malas até ao tejadilho, a contar os quilómetros e as fronteiras. Só que esta não foi uma viagem normal: avançava já sobre a Europa a segunda vaga da pandemia, trazendo consigo imposições cada vez mais severas de trânsito entre países e restrições em algumas das suas cidades, e urgia atravessar, com todas as precauções, Espanha, França e Itália, até enfim chegar à Eslovénia. Foram cerca de 2.300 quilómetros de autoestradas e muito pouco sono. Mas chegámos bem e com saúde, e gostamos muito de cá estar. Nos tempos que correm, é um luxo, com um misto de alívio e gratidão.
Poucos dias depois da nossa chegada, começou o confinamento na Eslovénia, que ainda se prolonga face a números epidemiológicos muito elevados, sobretudo se analisados em proporção à pequena população do país, de 2.1 milhões de habitantes, não dando tréguas nem a pacientes nem a profissionais de saúde, e impedindo o normal funcionamento da sociedade, da economia e das instituições. Como em tantos outros países.
Já se esgotaram os adjetivos para definir o ano de 2020. Ao escrever estas linhas em Liubliana, pouco antes do Natal, a pandemia continua a grassar implacavelmente pelo mundo fora, embora se aproxime já a luz ao fundo do túnel com a introdução das novas vacinas, que se espera possam permitir-nos retomar aos poucos a normalidade na família, no trabalho e na socialização em geral, após quase um ano a viver literalmente dentro de ecrãs.
Há poucos dias, a União Europeia deu um suspiro de alívio coletivo ao aprovar, na 25ª hora de negociações laboriosas e intensas, orçamento e fundos financeiros que irão aliviar as gravíssimas consequências económicas e sociais da pandemia para cidadãos e empresas nos Estados membros, e apoiar significativamente a sua recuperação. Neste preciso momento, impende ainda o desfecho das negociações sobre os termos do Brexit e a definição da distância que virá a separar, em termos quotidianos e práticos, as duas margens do Canal da Mancha. E os novos desafios não sustiveram o avanço dos já existentes nem tornaram menos essencial a sua mitigação, desde as alterações climáticas e o desrespeito pelos direitos humanos até às ameaças à segurança.
É nestas circunstâncias que, no dia 1 de janeiro e até 30 de junho de 2021, Portugal assume a Presidência rotativa do Conselho da União Europeia, com o muito apropriado lema “Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital”.
Há muitos séculos habituado a grandes e globais desafios, e trazendo no seu ADN um justo equilíbrio entre universalidade, proximidade e solidariedade, caberá ao nosso país, no primeiro semestre de 2021, implementar e avançar políticas cruciais que tornem a Europa mais resiliente e mais coesa, impulsionem a recuperação económica, aprofundem a muito importante dimensão social, promovam a transição digital, a inovação e a sustentabilidade ambiental, e dinamizem a abertura da União Europeia ao mundo num espírito global e equitativo. Após um ano doloroso e excecionalmente difícil, é essencial dar mais esperança aos cidadãos europeus e reforçar a sua confiança nas ações e instituições europeias, empoderando ao mesmo tempo as suas iniciativas e a sua participação ativa na construção de um destino comum.
A Presidência da União Europeia faz-se em todo o mundo, no exterior da União, onde é mais expressiva a dimensão da política externa europeia, no interior da União, com todo o conjunto de políticas comuns que se coordenam e aplicam nos Estados membros, e em estreito trabalho com as instituições europeias, numa renda intricada de equilíbrios e divisão de competências que o Tratado de Lisboa consagrou no final da terceira Presidência portuguesa da UE, em 2007. Os países que exercem a Presidência do Conselho trabalham em grupos de três, o “Trio de Presidências”, cuja composição se baseia na rotação igualitária entre os Estados membros, tendo em conta a sua diversidade e o equilíbrio geográfico na União. O Trio define objetivos a longo prazo e uma agenda comum de principais temas e questões a tratar nos 18 meses seguintes, que serve de base ao programa semestral, mais detalhado, de cada um dos três países que o compõem.
O Trio em que se insere a nossa Presidência europeia integra, para além de Portugal (que preside no 1º semestre de 2021), a Alemanha (que exerceu – muito bem – a sua Presidência no 2º semestre de 2020) e a Eslovénia (que presidirá no 2º semestre de 2021). Formamos um triângulo de cooperação verdadeiramente especial, com três países muito diferentes uns dos outros, mas que têm mantido uma cooperação estreita e harmonia de posições na maioria dos dossiês europeus.
A minha missão em Liubliana tem, assim, como elemento diferenciador e específico a circunstância de Portugal e a Eslovénia integrarem ambos o Trio de Presidências, com uma Presidência a suceder à outra em 2021. Na prática, o meu trabalho quotidiano consiste em reportar e analisar a partir de um dos vértices do triângulo, na perspetiva de Liubliana; cabe-me igualmente construir e manter uma boa rede de contactos junto de todas as entidades relevantes locais, desde as principais autoridades eslovenas até às Embaixadas dos Estados membros da União Europeia aqui acreditados (com as quais mantenho regular articulação), e efetuar todas as diligências que possam ser facilitadoras da concretização dos objetivos da nossa Presidência, do Trio de Presidências a das políticas e estratégias europeias. Dois meses volvidos sobre a minha chegada, e estabelecidos todos os principais contactos, o trabalho já está em velocidade de cruzeiro e anuncia-se ainda mais intenso a partir do Ano Novo.
Não posso deixar de enfatizar, neste contexto, que a decisão de assegurar uma presença diplomática na Eslovénia (funcionalmente afeta à Embaixada de Portugal em Viena, aqui acreditada) constitui um sinal de empenho e compromisso das autoridades portuguesas para com a cooperação entre Portugal e a Eslovénia durante as respetivas Presidências e no âmbito mais alargado da União Europeia. O que espero possa produzir bons resultados para ambas as partes, para as relações bilaterais entre os dois países e para a comunidade portuguesa e luso-eslovena aqui residente.
O dia nasce enquanto vou escrevendo. Da janela avisto o belíssimo castelo de Liubliana, iluminado de azul e dourado para celebrar o Natal. É uma fortaleza medieval que foi sendo transformada ao longo dos séculos, constituindo hoje um dos principais polos turísticos da cidade. Pela sua longa história passou, no final da Idade Média, o Imperador Frederico III de Habsburgo, casado com a infanta portuguesa D. Leonor, numa à época improvável, mas não despicienda aliança estratégica e diplomática (assim se fazia também a diplomacia) entre a dinastia de Avis e o Sacro Império Romano-Germânico. Li que Frederico III terá visitado algumas vezes Liubliana, acompanhado de Leonor de Portugal. Terá sido Leonor a primeira portuguesa em Liubliana?
A verdade é que desde há séculos se encontram Portugueses em todos os cantos do mundo. No meu anterior trabalho nas Comunidades Portuguesas, tive o privilégio de o confirmar. Conheci pessoas e comunidades fantásticas e valorosas, projetos e iniciativas incríveis, que me inspiraram e orgulharam.
A Eslovénia não é exceção. Aqui vim encontrar uma comunidade portuguesa de pequena dimensão, talvez umas 50 pessoas, a maioria residente em Liubliana. É diferente das comunidades portuguesas ditas “tradicionais”, grandes, de caracterização mais específica e de implantação mais antiga. Os portugueses na Eslovénia configuram uma emigração recente, dado que muitos vieram à volta de 2010, por força da crise económica ou para fazer Erasmus, prosseguir estudos superiores ou atividades profissionais; são, na sua maior parte, jovens na casa dos 30-40 anos; muitos têm qualificações académicas e percursos de vida diferenciados e interessantes. Sei de bioquímicos, doutorados em matemática e especialistas em inteligência artificial, músicos, documentaristas e designers, guias turísticos e até um antigo paraquedista das missões de manutenção da paz nos Balcãs. Aqui permaneceram, devido a boas perspetivas de progressão profissional e sobretudo, porque quase todos acabaram por casar com esloveno/as e têm atualmente filhos pequenos, binacionais e bilingues.
Ou seja, a maioria ficou cá por amor, o que só pode ser um bom sinal!
É uma comunidade ativa e dinâmica, que organiza regularmente iniciativas sobre Portugal e a cultura e língua portuguesas, em especial através da Associação de Amizade Luso-Eslovena e, também na dimensão da informação e divulgação, da revista “Sardinha”, contando além disso com parcerias eslovenas locais e acolhendo o envolvimento das demais comunidades lusófonas na Eslovénia.
Um tal dinamismo associativo surpreende numa comunidade tão reduzida, mas atrevo-me a deduzir que resulta, em grande parte, da juventude dos seus membros, da modernidade das suas iniciativas, da contextualização luso-eslovena (por via familiar) que intencionalmente imprimem às suas atividades e da sua muito clara intenção de educar os filhos num contexto bilingue e de promoção da ligação a Portugal. Em comum, têm aquela fórmula mágica dos portugueses no mundo, de combinar uma excelente integração no país de acolhimento com uma forte ligação a Portugal, à sua língua e à sua cultura.
A este enquadramento junta-se o trabalho das duas Leitoras de Português na Universidade de Liubliana, que há anos prosseguem a sua atividade docente e académica, incluindo organização de eventos, com verdadeiro espírito de missão, em prol da promoção da língua e cultura portuguesa na Eslovénia. Os números mostram-no: este ano letivo, e não obstante a situação pandémica (que de momento obriga às aulas por plataforma digital), existe quase uma centena de alunos matriculados nas aulas de Português da Faculdade de Letras da Universidade de Liubliana, nos três níveis ministrados.
Dizem-me as Leitoras que se regista neste país um crescente interesse pela aprendizagem do Português, especialmente por parte de jovens estudantes, com duas motivações principais: por um lado, a vocação das línguas românicas e a escolha do percurso académico na área das letras e, por outro, a constatação mais pragmática da importância do Português como ativo curricular essencial à futura carreira profissional e ao trabalho e negócios com os países de língua portuguesa. Já por parte da Universidade de Liubliana tem havido boa cooperação e reconhecimento da importância estratégica da Língua Portuguesa, assim como a vontade de a refletir e valorizar numa oferta curricular cada vez mais robusta. Existe, além disso, um número considerável de obras da literatura lusófona traduzidas para esloveno, de Saramago a Mia Couto, passando por Pessoa, Lobo Antunes e Gonçalo M. Tavares.
Disseram-me também que há músicos eslovenos que cantam o fado, sem a guitarra portuguesa, mas com uns arranjos maravilhosos e num Português irrepreensível. Ouvi-os online e confirmo. Aqui sentem o fado, garantem-me. Porque nesta região, percebida numa mais ampla perspetiva balcânica, também existirá um conceito próprio de saudade e uma nostalgia que perpassa as pessoas e a sua expressão artística. Afinidades a explorar, sem dúvida.
Já a Língua Eslovena é difícil, diz-vos quem aprendeu alemão num ápice e arranha russo básico. Já aprendi frases curtas e palavras de sobrevivência, no essencial para poder comer e pagar contas. Os eslovenos apreciam quando fazemos um esforço para dizer algo na sua língua e, em geral, acabamos todos a rir. São simpáticos, prontos a ajudar e têm sentido de humor.
Os Portugueses na Eslovénia e os seus representantes acolheram-me calorosamente, como numa pequena família. Já falamos e rimos, ao telefone e por Zoom, como se nos conhecêssemos há anos. Mal posso esperar por vê-los a todos pessoalmente e com eles conversar serão afora, de preferência à volta de uma mesa com iguarias e vinhos portugueses.
Existe, assim, um bom potencial para projetos interessantes no “ano luso-esloveno de 2021”, assim o alívio da situação pandémica o permita. Da minha parte, o empenho é obviamente total e o entusiasmo, então, nem se fala. E, mesmo que estas sejam umas Festas diferentes, tenhamos esperança nos dias que estão para vir e acreditemos nos grandes e belos novos começos, pois são eles que fazem o mundo avançar e progredir. Feliz Ano Novo!