Muitos escrevem sobre os nossos emigrantes e o progresso de França, Suíça, EUA e Brasil. Mas poucos sobre a impor- tância deles em Luanda.
Lá trabalhei pouco depois da indepen- dência, a recuperar equipamentos nas indústrias nacionalizadas e ainda com chefias intermédias. Não tinha havido manutenção adequada nem organização do trabalho após a saída dos donos ou diretores. Os trabalhadores sabiam as suas tarefas, mas não as que os portu- gueses realizavam. Havia kwanzas, mas faltavam produtos.
Após o diagnóstico e a aprovação do financiador, levei dois ótimos técnicos de manutenção, do Porto, e um engenheiro braso-sueco. Vivíamos em condições precárias, como todos, devido à guerra civil. Mesmo para estrangeiros com dólares, era difícil obter o básico e tínhamos de comprar muito no mercado alternativo, Roque Santeiro.
Trabalhávamos 12 horas por dia e mais algumas em filas. Eu levava aços, disjuntores, brocas, fresas; no avião só a roupa do corpo e uns 50kg de materiais. Para cada peça a criar, procurávamos alguma fábrica, em Luanda ou Viana, onde usávamos as poucas máquinas operatrizes que pudemos recuperar. Com conhecidos obtinha, por troca, uns tubos, cabos de cobre, etc. Rebobináva- mos motores elétricos. A nossa carrinha era um bom exemplo da criatividade dos tripenses. E o então primeiro-ministro Van Dunen confirmou-me: «precisamos de mais melhores práticas».
Quem muito nos ajudou foi Fernando, filho de um português, dono de uma gráfica, que ficou lá, apesar dos alertas, fazendo ele mesmo a manutenção do seu equipamento. Quando alguma entidade precisava de imprimir algo, tinha de importar papel e tinta, pois isto ele não conseguia obter.O Fernando apresen- tou-me a outros jovens portugueses que preferiram lá ficar e tentar sobreviver. Hoje ele possui grandes indústrias, pois seja qual for o governo, precisa de indús- trias e PMEs competentes.
No Clube Português de Luanda existiam muitas atividades cívicas. Eu próprio participei num domingo da doação de sangue para as vítimas da guerra. A maioria dos prédios estava degradada e alguns moradores oriundos do interior alimentavam galinhas nas casas de banho. Mas os prédios onde viviam portugueses estavam habitáveis e com razoável segurança.
Fernando poupava o máximo possível de papel e tinta e conseguia imprimir, uma vez por outra, um romance ou algo para as crianças. Os poucos autores que por lá ficaram eram seus amigos.
Todos se ajudavam: quem conseguia uma carga de carne no interior, dividia com amigos, pois a receita diária era ca- rapau com arroz ou arroz com carapau.
Após alguns anos muito atribulados, uns estrangeiros saíram e ficaram os amigos de séculos, portugueses. E uns brasileiros, que tinham no sangue o DNA e a cultura dos ex-escravos angolanos. Foram os bravos lusos que em Angola deram exemplos de persis- tência, docilidade e competência, sem a qual nenhum país se desenvolve. Hoje todos cantam a uma só voz. É o canto de Trabalho, Paz e Amor!